O filósofo também é um cosmonauta: apesar de não ter entrado em vestes espaciais e se mandado num foguete para longe da Terra, como fez em 1961 astronauta inaugural Gagárin, um filósofo como Spinoza (1632 – 1677) também “navegou” em pensamento pelo cosmos, ainda que de pés no chão, no esforço de decifrá-lo.
Seu panteísmo naturalista, sintetizado na fórmula “Deus = Natureza”, escancara as portas para a Ciência e solicita da filosofia que seja uma empresa de desmistificação e de demolição das superstições, crendices e credulidades que constituem as correntes que nos aprisionam à servidão.
A nova temporada da série de divulgação científica e especulação filosófica Cosmos – de notável impacto sobre a consciência das massas desde sua primeira temporada, com Carl Sagan, nos anos 1980 – já inicia tentando construir um Spinoza como herói da Ciência.
O pensador holandês seria o defensor intrépido de uma convicção de que a servidão humana só será vencida, e a liberdade só será conquistada, por aqueles que compreenderem a deusa Natureza. Para isto, é preciso que o próprio conhecimento se torne o mais potente dos afetos (uma fórmula que aproxima Spinoza de Nietzsche).
Subindo na Máquina do Tempo da série Cosmos – Possible Worlds (2020), podemos visitar a época de Spinoza e compreender melhor suas relações com a conjuntura científica daqueles tempos: estamos na Holanda do século XVII e “o andar da carruagem” técnica-científica havia gerado o surgimento e o início da proliferação de telescópios e microscópios. Nunca mais enxergaríamos o micro e o macro cosmos da mesma maneira.
Se McLuhan está certo e o ser humano cria extensões de seu próprio corpo na forma de meios de comunicação e de inventos tecnológicos, podemos dizer que foram criadas extensões do olho humano: “enxertos” técnicos que, acoplados a nossos órgãos corporais, levam nossa capacidade de ver para um além de seus limites naturais.
Transcendendo os poderes limitados do olho nu, tornou-se possível ver o longínquo (com os telescópios) e o minúsculo (com os microscópios). Estes processos análogos e sinérgicos da expansão dos horizontes ópticos confluíram para ajudar a parir a astronomia moderna. Esta se ergue, como sabemos, da punhalada de morte desferida contra a farsa do geocentrismo – a crença equivocada na Terra como centro imóvel do universo, somada à ilusão finalista de que todas as estrelas girariam ao nosso redor e ali estariam com a finalidade de deixar nossas noites mais belas…
Em Amsterdam, no século 17, Spinoza vivia em um contexto histórico onde a “guerra” entre o geocentrismo e o heliocentrismo ainda pegava fogo: em 1600, Giordano Bruno havia sido queimado vivo pela Inquisição católica por ter sustentado que a Terra girava em torno do Sol e por filosofar sobre “a infinita variedade de formas da Matéria”. Dizer a verdade era pecado mortal segundo o viés dos mercadores de ilusões…
“A infinita variedade de formas sob as quais a Matéria nos aparece, ela não a adquire de um outro ser, a Matéria não a recebe de fora, ela a faz sair de seu próprio seio. A matéria é, na realidade, o todo da natureza e a mãe dos vivos.” — GIORDANO BRUNO (1548-1600). In: História do Materialismo, de F.A. Lange, pg. 213.
Tempos depois, havia marcado época o caso Galileu, séculos depois adaptado para o teatro por Brecht: ele havia sido coagido brutalmente a renegar suas convicções heliocêntricas. Conta a lenda que, para salvar seu pescoço (ou melhor, para que não assasse vivo nas fogueiras da intolerância teocrática geocêntrica!), Galileu abdicou publicamente de defender suas teorias, mas teria morrido sussurrando: “e no entanto ela [a Terra] se move!”
O filósofo Spinoza, no entanto, não trabalhava diretamente com ciência, desenvolvia um labor aparentemente muito mais modesto: eram os ossos do ofício, para o Sr. Baruch Spinoza, polir lentes. A verdade é que o nosso pão de cada dia nem sempre é conquistado em atividades gloriosas, capazes de render fama imorredoura àquele atado à sua atividade “ganha-pão” – que muitas vezes é seu ramerrão…
Hoje, este pode nos parecer um trampo não muito sedutor, já que não parece ser uma via nem para o enriquecimento material nem para a obtenção de glórias mundanas. Mas o trabalho de Spinoza tinha alguns charmes latentes.
Se o conteúdo manifesto da profissão parece consistir apenas numa técnica de manipulação de um objeto óptico, há algo além disso a compreender: todo um tecido histórico que explica porquê, naquele aqui-e-agora que Spinoza habitava na Holanda, as lentes passam a importar muito mais, a constituir um mercado, a demandar profissionais dedicados a aperfeiçoá-las, burilá-las e poli-las.
Spinoza, ainda que o classifiquemos entre os “pré-iluministas”, por mera adesão a uma classificação cronológica que coloca o Iluminismo como filho do século 19 e condena tudo o que veio antes a um estado de pré, foi já marcadamente iluminista. Um iluminista renascentista, polindo lentes na era do telescópio e do microscópio, ciente dos horrores perpetrados por fanáticos religiosos contra cientistas e filósofos, que vem a público com seu Tratado Teológico-Político na atitude de quem quer espalhar luz. Seu ímpeto é o de iluminar o debate público com argumentação consistente, pesquisa histórica apurada, análise clarividente.
A Luz já é, para Spinoza, um símbolo positivo, e a “iluminação” humana lhe parece uma missão louvável à qual dedicar suas forças. Ele quer romper com o Império das Trevas imposto pelas superstições e credulidades: esta é a sua luta bem antes de ser a de Voltaire, a de Helvétius, a de Holbach, a de Feuerbach ou a de Nietzsche.
Realizando uma ousada e fecunda confluência entre as ciências e as artes, entre a filosofia e a pintura, Cosmos (2020) propõe ainda que a ambiência estética que mais se sintoniza com o spinozismo são os quadros iluminados de Vermeer (1632 – 1675):
A “luz como objeto de escrutínio científico” (“light as object of cientific enquiry”) é uma realidade da época tanto quanto a complexa aventura de Vermeer e outros pintores com a representação artística da luz, ou seja, da miríade de jogos entre luz e sombra. É neste contexto de luz em escrutínio, luz em representação, luz vista como um ideal cívico, que a luz da razão de Spinoza começa a resplandecer.
Para uma análise plena da conjuntura histórica e cultural em que Spinoza atua, Cosmos (2020) contribui com elementos cruciais, a começar pelo avanço de uma tese sócio-política e econômica raras vezes mencionada em livros filosóficos ou sociológicos de comentário spinozista: aquele um contexto onde a pujante indústria têxtil holandesa se utilizava de lupas para enxergar a fundo, com imagens ampliadas, os mais íntimos recessos das roupas tecidas. Nos quadros de Vermeer também podemos vislumbrar a riqueza dos tecidos e tapeçarias produzidos nos Países Baixos da época.
Os polidores de lentes, como Spinoza, costumeiramente eram fornecedores de lupas para estas empresas, o que de fato coloca esta classe de trabalhadores numa posição bastante subalterna e nada gloriosa, fazendo parte de uma espécie de proletariado subsidiário da indústria têxtil. Porém, como dissemos antes, esta é uma época de iluminação progressiva e avanço da pesquisa científica – tanto que a luz do saber técnico avança em óptica até parir telescópios e microscópios.
Partindo daí, nossa consideração sobre o ofício do Sr. Spinoza ganha outro caráter e passa a ser banhada por outra luz. Um polidor de mentes na Amsterdam da época de Spinoza não era apenas um “zé-ruela” a serviço de burgueses que faziam vestidos caros para dondocas ou tapetes chiques para os nobres. Mas sim um trabalhador da ciência que estava em colaboração com o trabalho dos grandes astrônomos e cosmologistas que eram seus contemporâneos.
A morte de Spinoza, aos 44 anos de idade, também banha-se em uma nova luz quando considerada no contexto das informações que viemos delineando: causada por este labor cotidiano, ou melhor, ocasionada pelas doenças causadas pelo excesso de inalação de substâncias tóxicas utilizadas em seu labor diário, a morte de Spinoza pode assim adquirir um pouco mais de heroísmo, caso consideremos que seu trabalho estava longe de ser inútil, desimportante ou de quase nenhuma relevância social.
A Ciência da época, dedicada à compreensão dos micro e dos macro mistérios, necessitava sim das lentes apuradas e bem polidas. Talvez estas lentes, acopladas a microscópios e telescópios, capacitando-nos a enxergar células e estrelas, não são na história do avanço científico também tributárias do trabalho não só de Spinoza, mas de trabalhadores anônimos que tramparam como ele?
Será que não poderíamos escrever uma nova versão do poema Brechtiano perguntando: muito bem, Galileu olhava pelo telescópio, mas qual o nome dos operários que poliram as lentes do instrumento e cujos nomes foram deletados da História?
A importância, na Amsterdam da época, de uma espécie de “burguesia dos tecidos” pode ser atestada por outro fato: Spinoza foi contemporâneo de outro importante cientista, construtor de microscópios, ele mesmo comerciante da área têxtil, chamado Anton van Leeuwenhoek. Em Cosmos, este – ou melhor, sua versão animada! – aparece enxergando todo o universo escondido numa gota d’água quando a coloca sob a lente de um microscópio que aumenta a imagem mais de 1.000 vezes… “A ele é atribuída a descoberta dos microorganismos.” (Wikipédia)
Isto tudo para dizer algo que hoje nos parece óbvio, mas que estava longe de sê-lo à época de Spinoza: para além do visível a olho nu, uma miríade de fenômenos complexos existia e podia ser acessada através destes “olhos artificiais” que tornavam possível a observação do infinitesimal e do longínquo – como fez Huygens, usando lentes bem polidas em seu telescópio, para enxergar os anéis do Saturno, tendo sido talvez o primeiro a enxergar que o planeta e seus anéis circundantes não estavam encostados, e o descobridor da lua saturnina, Titan.
Naquela época ainda estava em sua aurora inicial, como um Sol ainda tímido a raiar na consciência da época, a noção de que as estrelas que vemos no céu noturno na verdade são outros sóis, cada um deles com um sistema de planetas e luas orbitando a seu redor – outros mundos que os telescópios um dia evoluiriam para captar com cada vez mais detalhe.
Nos livros sagrados, no entanto, não há menção de vida em outros planetas ou de mundos orbitando sóis distantes. Se a Bíblia é a verdade absoluta, como defendem seus fanáticos, como pôde ignorar totalmente as realidades que os grandes astrônomos e cientistas começavam a desvelar na época em que a Terra plana e imóvel caí em descrédito e começava a beijar o pó a que estão destinadas as doutrinas falsas, obsoletas e caducas?
Ao raiar da série Cosmos – Mundos Possíveis, baseada no livro homônimo de Anne Druyan (co-autora, com Carl Sagan, da série Cosmos: A Personal Voyage, dos anos 1980), Spinoza é invocado pelo âncora do programa, Neil DeGrasse Tyson, como um wizard of light que teve a coragem de erguer sua filosofia para questionar dogmas, preconceitos e superstições que também os astrônomos e cientistas vinham se esforçando por confrontar:
“Com vinte e poucos anos, Spinoza, que havia sido membro da comunidade judaica, começou a falar publicamente sobre uma nova visão a respeito de Deus. O Deus de Spinoza eram as leis físicas do universo e seu texto sagrado era na verdade o Livro da Natureza. A maioria dos judeus de Amsterdam eram refugiados que haviam escapado da atroz Inquisição na Espanha e em Portugal, países onde tantos judeus haviam sido torturados e mortos. Amsterdam havia oferecido aos judeus um refúgio e eles devem ter visto as ideias perigosas de Spinoza como ameaçadoras à segurança que havia sido tão difícil de ser conseguida. Eles o excomungaram e decretaram que devia ser para sempre desprezado.” (DRUYAN / TYSON. Cosmos, 2020, Episódio 1, “Ladder to the Stars”)
Esta excomunhão de Spinoza terá graves consequências para sua vida, é claro. A ponto da Ética, hoje um clássico da história da filosofia, não ter sido publicada em vida pelo filósofo, que temia as reações adversas contra seu livro – que, a julgar pelo escarcéu erguido contra o Tratado Teológico-Político, poderiam ter sido extremadas.
Talvez exista um certo exagero, pois, na tentativa de transformação de Spinoza num campeão da liberdade de expressão e de pesquisa científica, quando sua postura ao reter a Ética na gaveta não testemunha um ímpeto ousado e confrontador, mas um caráter prudente e nada afeito a controvérsias gratuitas.
Em um dos melhores estudos sobre o Tratado Teológico Político, Steven Nadler revelou em minúcias o contexto que envolve este Livro Forjado no Inferno – O tratado escandoloso de Espinosa e o nascimento da era secular (Ed. Três Estrelas). Ali, o autor afirma, sobre a fórmula spinozista Deus sive Natura:
“O Deus de Spinoza não é um ser transcendente, supranatural. Não é dotado dos aspectos psicológicos ou morais atribuídos a Deus por muitas religiões ocidentais. O Deus de Spinoza não manda, não julga nem faz alianças. Entendimento, vontade, bondade, sabedoria e justiça não fazem parte da essência de Deus. Deus não é a providencial e espantosa deidade de Abraão. Antes, é a fundamental, eterna, infinita substância da realidade e a causa primeira de todas as coisas. Tudo o mais que existe faz parte (ou é um “modo”) da Natureza (…) e não há nada que escape às suas leis.
(…) Assim, nada se dá por qualquer razão suprema nem para servir a qualquer meta ou a algum plano abarcante. O que quer que ocorra, ocorre tão somente porque é suscitado pela simples ordem causal da Natureza. E, uma vez que Deus é idêntico aos princípios causais ativos e universais da Natureza – a substância de tudo -, segue-se que a concepção antropomórfica de Deus, que, como pensa Spinoza, caracteriza as religiões sectárias, e todas as postulações sobre recompensa e castigo que ela implica não passam de ficções supersticiosas.” (NADLER, 2013m pg. 32)
Ao fim do episódio inaugural de Cosmos (2020), constrói-se a imagem de que Spinoza, de certo modo herdeiro de G. Bruno, seria o abre-caminhos para Einstein. Este, de fato, visitou o Museu Spinoza, tinha a Ética como um de seus 5 livros prediletos e, quando perguntando se acreditava em Deus, respondeu assim:
“Acredito no Deus de Espinosa, que se revela por si mesmo na harmonia de tudo o que existe, e não no Deus que se interessa pela sorte e pelas ações dos homens.” (Saiba mais em A Razão Inadequada)
O colapso do fraude, tão carinhosamente nutrida através dos séculos, de um deus antropomórfico, bem parecido com um animal humano macho, preocupado conosco como um papai-do-Céu, anotando em seu caderno de notas sobre nossos méritos e pecados, para depois nos condenar ao Inferno ou ao Paraíso, põe fim ao estado de “menoridade” em que a humanidade permanece atada caso não aceite a aventura desafiadora da lucidez. Mas sobre os escombros desta fraude é preciso construir – e para tal fim cientistas e filósofos podem e devem contribuir. Tanto é assim que tornou-se emblemática a afinidade eletiva que unia Einstein a Spinoza, a ponto de Nise da Silveira destacar em suas Cartas ao pensador holandês:
Meu caro Spinoza,
Você é mesmo singular. Através dos séculos continua despertando admirações fervorosas, oposições, leituras diferentes de seus livros, não só no mundo dos filósofos, mas, curiosamente, atraindo pensadores das mais diversas áreas do saber, até despretensiosos leitores que insistem, embora sem formação filosófica (e este é o meu caso), no difícil e fascinante estudo da filosofia.
Mais surpreendente ainda é que, à atração intelectual, muitas vezes venham juntar-se sentimentos profundos de afeição. Assim, Einstein refere-se a você como se, entre ambos, houvesse “familiaridade cotidiana”.
Que o futuro possa ser fecundo em familiaridades cotidianas entre filósofos e cientistas, entre pensadores e artistas, na confluência da criatividade catalisadora dos “inéditos viáveis”!
por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro, Agosto de 2020
NOTAS E REFERÊNCIAS
EINSTEIN, Albert. Citado a partir de artigo em A Razão Inadequada.
NADLER, Steven. Um Livro Forjado no Inferno – O tratado escandoloso de Espinosa e o nascimento da era secular. São Paulo: Ed. Três Estrelas, 2013.
SILVEIRA, Nise. Cartas a Spinoza. Citada a partir da Ed. Caliban.
SÉRIE COSMOS (2020) – A citação original do trecho sobre Spinoza em Cosmos – Possible Worlds (episódio 1, temporada 2020): “He was another wizard of light. Baruch Spinoza had been a member of the Jewish congregation of Amsterdam through his teen years, but in his early 20s, he began to speak publicly of a new vision of god. Spinoza’s god was the physical laws of the universe. His sacred text, the laws of nature.
He went even further, daring to write that the bible was not dictated by god but written by human beings. Spinoza wrote, “Do not look for god in miracles. Miracles are violations of the rule of nature. God is best apprehended in the study of those laws.” No one had ever said these things out loud. Spinoza knew he was testing the limits of free thought even for Holland.
To him, an official state religion was more than spiritual coercion. Spinoza regarded the major events of organized religious traditions as organized superstition. In his view, magical thinking posed a danger to the future citizens of a rational, free society. There could be no such thing as a democracy without a separation of church and state. He wrote a book that introducing the ideas at the heart of the American and many another revolutions.”
Publicado em: 19/08/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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